Culto: da Adoração ao Entretenimento

“O culto não é para o homem, mas para Deus; não começa na criatividade humana, mas na revelação divina.”

Vivemos dias de profunda crise litúrgica. O culto cristão, que deveria ser a mais pura expressão de reverência, comunhão e proclamação, está sendo lentamente corroído por tendências pragmáticas, estéticas e mercadológicas. O entretenimento, com suas luzes, sons e dinâmicas cênicas, tem ocupado o espaço da adoração. E como bem observou A. W. Tozer: “O que nos atrai, é o que nos convence; e o que nos convence, é o que nos conquista.”

Esse processo não é novo, mas tem ganhado força em nossos dias com a secularização da espiritualidade. O culto, que deveria ser regido pelas Escrituras, tem se tornado um produto moldado pelos gostos do público. Como evidenciado no artigo A Influência do Entretenimento dentro da Estrutura Litúrgica dos Cultos Cristãos (Salgado & Maximo, 2024), a lógica do espetáculo substituiu a lógica da reverência. O culto virou evento, e o púlpito virou palco.

TEXTO BASE: Levítico 10.1-3

“Nadabe e Abiú, filhos de Arão, tomaram cada um o seu incensário, e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre este, e trouxeram fogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor. Disse Moisés a Arão: Isto é o que o Senhor falou, dizendo: Serei santificado naqueles que se chegam a mim, e serei glorificado diante de todo o povo. Arão, pois, calou-se.”

Este episódio dramático e solene nos apresenta uma das bases mais firmes para a doutrina conhecida como o Princípio Regulador do Culto. Segundo este princípio, somente aquilo que Deus expressamente ordenou em Sua Palavra deve ser praticado no culto público. Tudo o que Ele não ordenou deve ser excluído. Nadabe e Abiú pecaram não ao fazer algo que Deus proibira explicitamente, mas ao introduzirem no culto algo que Deus não havia ordenado. O resultado foi desastroso: foram consumidos pelo fogo divino.

“A igreja que entretém não é perseguida pelo mundo — ela é aplaudida por ele.”

A Centralidade do Culto na Vida da Igreja

Para os reformadores, o culto era a principal expressão da fé cristã. Lutero afirmava que a verdadeira igreja é aquela em que o evangelho é pregado e os sacramentos corretamente administrados. Calvino ia além, argumentando que o culto deveria ser inteiramente regulado pela Escritura, pois “Deus desaprova qualquer culto inventado pelo homem”. Calvino ainda afirmou:

“Uma vez que Deus não apenas nos prescreve o que devemos fazer, mas também nos ensina como devemos fazê-lo, é necessário que sigamos essa direção com reverência e obediência.” (João Calvino, Institutas, Livro 4, Capítulo 10).

O culto público não é mero encontro fraterno, tampouco um espaço de expressão artística ou entretenimento emocional. É, antes, o comparecimento do povo de Deus diante do seu Senhor, com temor e tremor, para adorá-lo em espírito e em verdade (Jo 4.23-24). A teologia reformada compreende o culto como uma resposta à iniciativa divina da redenção. É Deus quem chama, é Deus quem fala, é Deus quem edifica — e a nós cabe o papel de ouvintes obedientes e adoradores submissos.

“A Palavra preside o culto; a emoção responde, mas não dirige.”

O Princípio Regulador do Culto: Guardando a Pureza da Adoração

A Reforma Protestante do século XVI não foi apenas um movimento doutrinário, mas também uma revolução litúrgica. Um dos pilares dessa revolução foi o Princípio Regulador do Culto (PRC), que afirma que somente os elementos expressamente prescritos ou claramente inferidos nas Escrituras devem ser utilizados no culto público.

Esse princípio é diferente do Princípio Normativo do Culto, adotado pela Igreja Católica Romana e por algumas tradições protestantes, que permite tudo o que não é proibido pela Bíblia. O problema dessa abordagem é que ela abre espaço para inovações humanas, tradições inventadas, e práticas que, embora não condenadas diretamente, desviam o culto de sua finalidade bíblica e o tornam antropocêntrico.

O Princípio Regulador, por outro lado, reconhece que Deus é o único soberano sobre o culto. Como afirma a Confissão de Fé de Westminster (21.1):

“O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo e, de modo tão limitado por Sua própria vontade revelada, que não se deve adorar a Deus conforme as imaginações e invenções dos homens […], sob qualquer representação visível ou de qualquer outro modo não prescrito nas Escrituras.”

A aplicação prática desse princípio significa que os elementos do culto devem se restringir à leitura das Escrituras, pregação fiel da Palavra, oração, cânticos bíblicos, administração dos sacramentos, confissão de pecados e bênção. Tudo mais — encenações, coreografias, luzes, fumaça, “palhaços gospel”, apresentações dramatizadas — por mais bem-intencionado que pareça, não possui respaldo escriturístico e, portanto, não deve ocupar o espaço sagrado do culto.

“O Princípio Regulador protege o culto da corrupção humana e preserva a glória de Deus.”

A Deturpação do Culto: Da Igreja Romana ao Evangelicalismo Pós-moderno

Historicamente, um dos grandes desvios contra os quais os reformadores lutaram foi a deturpação do culto cristão promovida pela Igreja Católica Romana. Esta adicionou ao culto elementos como o latim litúrgico (incompreensível ao povo), os sacramentos como meios mecânicos de graça, a adoração aos santos, as imagens, as relíquias, as velas, os sinos, os incensos, e, sobretudo, a centralização da Eucaristia como sacrifício renovado — algo frontalmente contrário à suficiência do sacrifício de Cristo (Hb 10.10-14).

Ao se afastar da Escritura como única regra de fé e prática, o catolicismo fez do culto um espetáculo ritualista, carregado de misticismo e práticas extrabíblicas. Foi por isso que os reformadores clamaram por uma reforma no culto, restabelecendo a simplicidade, inteligibilidade e centralidade da Palavra.

Infelizmente, o que hoje se vê em muitos contextos evangélicos é um retrocesso para formas similares: liturgias cheias de apelos sensoriais, com destaque ao visível e ao emocional, empobrecendo a instrução doutrinária e substituindo a exposição bíblica por “pregações-show”. O perigo atual é ainda mais sutil, pois não se apresenta como heresia dogmática, mas como um apelo à “relevância cultural” e ao “acesso às novas gerações”.

“A forma do culto revela sua teologia. Se formos frívolos na liturgia, seremos fracos na doutrina.”

As Consequências de Mudar o Culto

Ao modificar a forma do culto para torná-lo mais atrativo, corremos sérios riscos:

  1. Descentralização de Deus – O culto passa a ser centrado nas emoções humanas e não na glória divina.
  2. Degradação doutrinária – O tempo de exposição bíblica é encurtado ou eliminado em favor de atividades “mais leves”.
  3. Infantilização espiritual – Crentes são alimentados com leite emocional, não com o alimento sólido da Palavra (Hb 5.12-14).
  4. Perda da reverência – A solenidade e o senso de santidade são substituídos por barulho e descontração.
  5. Sincretismo litúrgico – Elementos mundanos são inseridos no culto sob o pretexto de “alcance cultural”.

O culto que deveria formar o crente, transforma-se em algo que apenas o agrada. A igreja que deveria confrontar o mundo, começa a imitá-lo.

“Quem molda o culto para agradar o homem, deixará de edificar o povo e de glorificar a Deus.”

Perigos contemporâneos

Infelizmente, mesmo em igrejas evangélicas, há um retorno perigoso à criatividade humana no culto: shows, performances, coreografias, teatralizações, fumaça, luzes, líderes que mais se assemelham a apresentadores de TV do que ministros do evangelho. A música, em vez de ser veículo da verdade bíblica, torna-se entretenimento emocional. Há igrejas que justificam tais práticas com a frase: “Se for para atrair as pessoas, vale a pena” — um pensamento pragmático e antibíblico.

Devemos lembrar que o culto não é para agradar os homens, mas a Deus. O apóstolo Paulo escreveu: “Pois, busco eu agora o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo” (Gálatas 1.10).

A música de fundo na pregação

Uma das práticas modernas que deve ser cuidadosamente rejeitada é o uso de música de fundo durante a exposição da Palavra de Deus. A pregação deve ser suficiente em si mesma para comunicar com clareza a verdade do evangelho. O apóstolo Paulo escreve em Romanos 10.17: “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo” — e não pela ambientação musical. A música emocionalmente manipuladora pode distrair, distorcer ou diminuir o poder simples e direto da Palavra proclamada.

A Escritura é poderosa porque é inspirada por Deus (2 Timóteo 3.16). Ela não precisa de “ajuda” sensorial para convencer ou converter. Essa prática de fundo musical pode transformar o momento da pregação em uma apresentação teatral, e não em uma proclamação de fé consciente.

A Palavra de Deus não precisa de trilha sonora, precisa de exposição fiel.

A arquitetura voltada para o consumismo

Outro grave perigo está na transformação dos espaços de culto em ambientes voltados ao consumo, espelhando-se na estética de shoppings e centros de entretenimento. Palcos, praças de alimentação, cafés temáticos e decorações extravagantes têm substituído a simplicidade reverente que sempre caracterizou a verdadeira casa de oração.

Essa mudança reflete uma teologia antropocêntrica: a igreja é moldada para agradar ao visitante, não para glorificar a Deus. O templo deixa de ser o lugar da Palavra e da oração (Marcos 11.17) e torna-se um espaço de performance e consumo. As pessoas vêm para “experimentar sensações”, não para “oferecer culto racional” (Romanos 12.1).

Quando a igreja parece um shopping, o culto vira um produto e os adoradores, consumidores.

Um Clamor Pastoral por Reforma

Diante desse cenário, é urgente que as igrejas voltem à simplicidade e fidelidade do culto reformado. O culto deve ser regulado, não pelo gosto da congregação, mas pela voz do Pastor supremo da Igreja: Cristo. O púlpito deve ser o trono da Palavra, e o culto, um altar de entrega e adoração.

Como pastor, clamo por um retorno à reverência, à centralidade das Escrituras, à exposição fiel da Palavra, à doutrina sólida nos hinos e à participação consciente e bíblica dos crentes. Que o culto público seja, como Paulo exorta, “tudo feito com decência e ordem” (1Co 14.40), pois “Deus não é Deus de confusão, mas de paz” (1Co 14.33).

“Se queremos um avivamento verdadeiro, devemos começar reformando o culto.”

Conclusão

A forma como cultuamos revela quem cremos que Deus é. Se o culto for casual, frívolo e centrado no homem, o nosso conceito de Deus estará distorcido. Mas se o culto for reverente, bíblico e centrado em Cristo, mostraremos ao mundo que o nosso Deus é Santo, Justo e digno de toda adoração.

Voltemos ao altar. Saiamos do palco. Voltemos à Palavra. Saiamos das invenções. Voltemos ao Cristo glorificado. Saiamos da banalização. E então, nossos cultos serão, de fato, agradáveis ao Senhor e edificantes ao seu povo.

Soli Deo gloria

Franco Júnior

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